sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Ideia: Desenhos de Edifícios à Escala Real Feitos num Parque de Estacionamento

 
[Cortesia do gabinete de arquitetura Vardehaugen]
Ajudar a visualizar é uma arte por mérito próprio. Quem já teve nas mãos os desenhos de um projeto (de uma casa, de uma bicicleta ou de uma qualquer peça industrial) sabe o esforço que é necessário para se projetar no futuro e ver como se irá parecer o objeto final. Mas se por um lado o autor de um projeto já tem uma certa predisposição para imaginar como será (afinal o projeto pode ser fruto da sua imaginação), por outro lado transmitir uma tal imagem a outra pessoa – um cliente por exemplo – então a questão muda de figura.

Para o gabinete de arquitetura Vardehaugen, sediado em Oslo, Noruega, a solução é um tanto simples. Esta equipa de arquitetos recorre a um método elementar e low tech para visualizar e simular a fruição dos espaços que projeta, utilizando giz e fita adesiva para desenhar à escala real no chão do parque de estacionamento os futuros edifícios.

[Cortesia do gabinete de arquitetura Vardehaugen]

[Cortesia do gabinete de arquitetura Vardehaugen]


Com efeito, para qualquer arquiteto, a capacidade de visualizar o que ainda não está construído é uma parte importante do seu ofício, tanto para avaliar como para experimentar e comunicar soluções. Porém, a dificuldade reside em transmitir a sensação de escala e tamanho dos espaços projetados através das convencionais técnicas de visualização 3D (sejam elas renderizações digitais ou maquetes à escala). Para ultrapassar esse obstáculo - ou pelo menos minimizá-lo - a Vardehaugen, numa apresentação escrita do seu processo de trabalho, diz que ”[realizamos] desenhos à escala real no nosso pátio para assegurar um maior entendimento do tamanho e das proporções nos nossos projetos. Isto permite-nos dar um simples passeio através dos nossos projetos e tomar o sentido das dimensões e sequências espaciais mesmo antes de serem construídos”.

[Cortesia do gabinete de arquitetura Vardehaugen]

[Cortesia do gabinete de arquitetura Vardehaugen]

“O corpo é o conduto da arquitetura” escreveu o arquiteto visionário Neil Spiller (previamente). Por isso, a arquitetura é algo que se relaciona intimamente com a nossa experiência corporal. E é essa experiência, com a sensação de espaço e de proporção, de tamanho e de escala, que abre a porta às possibilidades arquiteturais.

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Filme: "Espelho na Mente" ("Mirror in Mind")

Uma mulher olha para a sua própria mente, confrontado-se com as ideologias que habitam à sua volta. Um filme de animação stop motion pela artista coreana Seunghee Kim.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Filme: Miss Hokusai

Poster de Miss Hokusai


Katsushika Hokusai (1760 - 1849) é conhecido principalmente pelas seus trabalhos de ukyio-e, a técnica japonesa de gravura com blocos de madeira. Um dos seus trabalhos mais conhecidos é A Grande Onda ao Largo de Kanegawa.

Katsushika Hokusai, A Grande Onda ao Largo de Kanegawa (da série As Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji), 1826 - 1833.

A sua obra é tida como uma das grandes influências na arte ocidental da segunda metade do séc. XIX - como o impressionismo e a Arte Nova - tendo sido colecionada por vários artistas de renome dessa época.

Neste filme de animação realizado por Keiichi Hara, lançado em 2015, é contada a vida de Hokusai vista pelos olhos da sua filha, Katsushika O-Ei, ela também uma artista, eclipsada pela sombra do pai.


quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Neil Spiller: Um Arquiteto Entre o Projeto e a Arte

Museu de Docklands (Museum of Docklands), 1986. Cortesia do Prof. Neil Spiller.

A primeira vez que me cruzei com o trabalho de Neil Spiller foi numa pequena palestra de fim-de-dia, proferida pelo próprio Spiller, como parte complementar do programa de um breve curso de desenho. A oratória e a gráfica daquela palestra era indubitavelmente familiar, mas com um quê de incomum suficiente para obrigar a uma atenção redobrada para se entender exatamente o seu conteúdo. A pequena sala de conferências estava ime
rsa em semiobscuridade à exceção do local onde o orador apresentava o seu trabalho. De postura serena e humor subtil – mas sem nunca se rir – Neil Spiller desfiava o rosário de verdades, ironias e sarcasmos da sua carreira, com as referências às pessoas e aos momentos-chave ligados aos desenhos que se iluminavam numa grande tela branca atrás de si. O discurso fomentava um ambiente entrecortado por risos vindos da audiência, enquanto na grande superfície branca se projetavam imagens de desenhos executados em papel, com linhas ora precisas, de uma tecnicalidade irrepreensível, ora libertas, de desenho à mão livre; traços de uma finura exata, a par com outros de uma espessura necessária; manchas e sombreados, que vão de negros retintos a cinzentos brilhantes; em alguns desenhos, as marcas feitas no papel dão forma a uma imagem mais ou menos familiar enquanto noutros, a algo que a audiência reconhece como um qualquer objeto, mas cuja escala não se torna imediatamente evidente; noutros ainda, os desenhos afiguram-se como algo absolutamente abstrato. Eventualmente, o orador abandonava o seu posto em direção à tela e apontava este ou aquele pormenor da imagem para acompanhar a sua dissertação, identificando uma ou outra nomenclatura técnica menos evidente. Apesar da abundante dimensão artística, e ultrapassada a estranheza aparente, os trabalhos mostrados na grande tela podiam afinal ser olhados e classificados como desenho de arquitetura. Porém, reduzir a obra produzida por Neil Spiller (individualmente ou em colaboração com outros artistas e arquitetos) a um conjunto de propriedades artísticas ou um conjunto de técnicas de projeto arquitetónico será por demais simplista. É difícil sintetizar e englobar numa só categoria toda a sua produção imaginária e simbólica, todo o seu conteúdo semiótico, sendo inegável o contributo da obra deste prolífico arquiteto para a discussão dos paradigmas das práticas contemporâneas do desenho e da arquitetura.

Neil Spiller é professor catedrático de Arquitetura e Paisagem em Hawksmoor e Deputy Pro-Vice-Chancellor da Universidade de Greenwich, Londres, tendo sido antes disso Reitor da Escola de Arquitetura, Design e Construção e Professor de Arquitetura e Teoria Digital nessa mesma universidade. Previamente, foi Vice-Reitor e Diretor Graduado de Design na Bartlett School of Architecture, na University College London. Neil Spiller é também conhecido por ter dirigido em 2004 a fundação do AVATAR (Advanced Virtual and Technological Architectural Research) Group, sediado atualmente na Universidade de Greenwich. Este grupo possui os seus próprios programas de Mestrado e Doutoramento e conduz pesquisas dentro das tecnologias avançadas em representação arquitetural dando maior importância à pesquisa do impacto no design do séc. XXI de novas tecnologias como a virtualidade e a biotecnologia. Neil Spiller e o AVATAR Group são reconhecidos pela sua contribuição para a mudança de paradigmas no discurso, pesquisa, experimentação e ensino arquitetónicos. E nesse contexto Spiller acredita que os tutores são “parteiras criativas que ajudam a dar à luz o trabalho individual dos estudantes, trabalho esse que é influenciado pelo passado sem no entanto se deixar escravizar por ele”(Spiller).

Em linha com o trabalho deste artista estão antecessores extemporâneos como Giovanni Piranesi, Etienne-Louis Boulee (ambos do séc. XVIII), Hermann Finsterlin (mais recente, nascido em 1887), ou a dupla Alexander Brodski e Uliya Utkin (pertencentes ao grupo cognominado paper architects) e outros contemporâneos, como Lebbeus Woods, constituindo referências maiores da chamada arquitetura visionária. Esta nada convencional e experimental arquitetura visionária é relativizada por duas perceções quase paradoxais: uma em que é inexistente a noção de edificações impossíveis de serem construídas; e outra em que as edificações muito dificilmente serão habitadas ou funcionalizadas por seres humanos apesar de serem pensadas para tal. Apesar de os desenhos de Neil Spiller parecerem absolutamente utópicos, as edificações por si projetadas apenas assim parecem devido justamente à não existência de uma fonte de financiamento suficientemente excêntrica para suportar uma tal empreitada. Os seus trabalhos surgem da génese das prescrições do projeto arquitetónico mas fundem-se na obra artística. No fundo, essa poderá ser a relação de amor-ódio, um misto de estigma/triunfo, da arquitetura visionária com o produto artístico. De facto, tais trabalhos – ou projetos?- vivem dessa dualidade possível/impossível que faz com que esta forma de arquitetura habite apenas o papel. De certo modo, construir concreta e fisicamente o que Neill Spiller projeta (válido também para os outros arquitetos visionários) seria aniquilar a visão do arquiteto-artista. Convenhamos: há certas coisas, certas visões, que apenas detêm a sua magia se nunca saírem do papel (muitas vezes até no estado embrionário do esboço ou do estudo preliminar).
Facto interessante do trabalho de Neil Spiller é o de ele subverter a própria técnica de normalização da apresentação do desenho em arquitetura. A visualização do projeto mantém as nomenclaturas típicas - elevações, alçados, cortes, axonometrias, vistas explodidas, extrusões - mas requer algum exercício de imaginação para que se possa experienciar a concretização da construção civil em questão. Na verdade, as nomenclaturas estão lá, sim, mas poderão não ser o que um observador avisado pelas boas regras da arte do projeto em arquitetura estará à espera (ver abaixo Desenho para o projeto de uma nova escola da Architectural Association School, p. ex., ou Museu de Docklands).
Observe-se como a partir de Rua Dean (e até do Desenho para o projeto de uma nova escola da Architectural Association School) os desenhos de arquitetura mais facilmente identificáveis e ortodoxos se vão transmutando gradualmente em gráficos de projeto cada vez mais e mais autónomos sob uma perspetiva artística, apesar de nunca perderem de vista (literalmente) o desenho de projeto e a ideia de uma materialização autêntica. Não será necessário ser um conhecedor profundo para intuir que a arquitetura e o desenho têm um longo historial de pareceria, de inerência, de cumplicidade mesmo. Porém, a possibilidade de o desenho adquirir uma certa autonomia em relação ao que se prevê construir detém em si mesma uma grande potência. São desenhos que poderiam ser edificações, mas que provavelmente nunca o serão, devido tanto à excentricidade da empreitada como à autonomia da obra desenhada. E no entanto, ambas as condições sustêm a manifestação de obra artística na medida em que se sujeitam às múltiplas leituras de quem as observa. A literalidade dessas leituras é dicotómica: mais libertadora quando o projeto, ainda no papel, é votado à utopia ou mais evidente quando o desenho é pensado como uma edificação a construir (não fosse o tamanho da sua excentricidade torná-lo uma quase nulidade do ponto de vista da usabilidade). Aqui, definitivamente a forma não segue a função. Não é raro por isso encontrar arquitetos que praticamente abandonaram a ideia do desenho como ferramenta de projeto para abraçarem a potencialidade exclusiva do desenho como valência por si própria.
Em todo o caso, e sob a luz dos adventos da história da arte desde o modernismo até à contemporaneidade, este tipo de trabalho criativo traz-nos novas formas de ver e fazer, novas formas de experienciar e exercitar a nossa relação com a arquitetura e com o desenho. O desenho é-nos mostrado uma vez mais na sua dimensão de ferramenta de apoio ao processo de imaginação e de concretização arquitetónica e da forma como comunicamos essas faculdades. O trabalho de Neil Spiller é por isso um grande contributo para a massa crítica da evolução da prática contemporânea do desenho e da exploração dos seus paradigmas. A obra Máquina Velasquez reflete mesmo uma certa preocupação com esse contributo, não em absoluto para com o desenho, mas para com a arte em geral. Para Neil Spiller foi desde Velasquez (1599) que os artistas começaram a ser cada vez mais narcisistas, em que eles próprios são simultaneamente o sujeito e o objeto das suas obras (vejam-se os exemplos de Tracey Emin ou Nan Goldin, nomes maiores da arte contemporânea). A preocupação com a posição do narcisismo na arte contemporânea está patente neste objeto arquitetónico: através da subversão de um manifesto narcisista, a Máquina Velasquez remete para o interesse do autor em pôr em evidência “o encavalitar da abstração e da representação, uma perturbação crítica na história da arte” (Spiller). Porém, as preocupações de Neil Spiller vão mais além do que os conceitos elementares da arte.

Desde cedo que Neil Spiller faz tentativas de introduzir a narrativa na obra arquitetónica. Se por um lado a ideia não é nova, por outro a narrativa desapareceu do panorama arquitetónico desde o modernismo, devido à sua atitude de “santidade de programa e funções” (Spiller). A intenção deste arquiteto quanto à narrativa torna-se evidente logo nas primeiras obras (Desenho para o projeto de uma nova escola da Architectural Association School) e prolonga-se depois até obras mais recentes como Pavilhão Milénio. Pavilhão Milénio mostra essa noção de edificação como metáfora ou narrativa em que uma série de eventos levados a cabo pelo eventual utilizador constroem a função do edifício. Para Neil Spiller, a sociedade conforma o corpo – o corpo é o conduto da arquitetura. Conforme o corpo é modificado, modificam-se também as possibilidades arquiteturais. “A arquitetura deverá responder numa variedade de novas escalas, algumas microscópicas, outras cosmoscópicas” (Spiller)

Vasos Comunicantes é provavelmente a obra mais paradigmática de Neil Spiller. Vasos Comunicantes é uma obra iniciada em 1998 e continuada até hoje como um corpo de trabalho de pesquisa em design de arquitetura. Neste trabalho estão patentes dois focos de pesquisa: num dos focos é reiterada a influência de várias áreas da produção científica humana (da biotecnologia, do virtual e da nanotecnologia) na arquitetura, nomeadamente em “relação à velha dicotomia entre arquitetura e paisagem.” (Spiller); o outro foco de pesquisa constitui-se na abordagem aos paradigmas da arquitetura na busca de arranjos espaciais mais apropriados à nossa atualidade. Neil Spiller afirma que “observando algumas das táticas espaciais dos Dadaístas, Patafísicos(1), Surrealistas, Situacionistas, OuLiPo(2) e Simbolistas, podemos adquirir um conhecimento de novos arranjos espaciais [...] apropriados para o nosso tempo” (Spiller). Com Vasos Comunicantes Spiller pretende assegurar-se que estamos perante uma “evolução de estéticas suaves no meio de um frenesim extático” (Spiller) como uma metáfora autêntica de contracultura dentro da progressão da própria arte contemporânea. Este projeto de pesquisa conta atualmente com mais de 250 desenhos e milhares de palavras de prosa e explicação teórica. Como numa navegação de cabotagem, o processo deste trabalho despoja-se gradualmente dos constrangimentos técnicos e, porque não dizê-lo, sacrossantos das arquiteturas para se constituir em direção a um trabalho artístico, assumindo porém sempre aquela dimensão de um projeto que na sua génese é de arquitetura (sempre na presença da preocupação com os entabulamentos espaciais que conformam a arquitetura).

Quem procura ilustração no mundo que Neil Spiller criou ficará profundamente desiludido, é uma tarefa vã. “Um bom esquema e desenho deverá ter enigmas, um certo espaço de manobra para permitir posterior releitura especulativa” (Spiller). Os seus desenhos são complexos e formulam pensamentos igualmente complexos. Lebbeus Woods escreveu sobre Neil Spiller:

“Para Neil Spiller, desenho é pensamento. Ele não ‘expressa’ pensamentos previamente formulados [...]. Ao invés, ele formula pensamentos através do desenho, efetivamente pelo desenho. [...] Sentimo-nos, depois de entrarmos nos desenhos, como se tivéssemos descoberto um mundo inteiro, cuja exploração nos levará para longe do mundo que nos é familiar, mas que eventualmente nos trará de volta a ele, com as nossas perceções enriquecidas, as nossas imaginações estimuladas e expandidas, o melhor para apreciar com novas maneiras o que nos é familiar”.

Desenho para o projeto de uma nova escola da Architectural Association School, em Covent Garden. Perspetiva Interior: Vida (Interior Perspective: Life); 1985. [Cortesia do Prof. Neil Spiller]

Rua Dean (Dean Street), 1985. Cortesia do Prof. Neil Spiller.

Pavilhão Milénio (Millenium Pavillion), 1996. Cortesia do Prof. Neil Spiller.

O Objecto Além de Si Próprio (Vasos Comunicantes) [The Object Beside Itself (Communicating Vessels)], 1998. Cortesia do Prof. Neil Spiller.

Máquina Velasquez (Velasquez Machine), 2002. Cortesia do Prof. Neil Spiller.
Para saber mais sobre o trabalho de Neil Spiller:
lebbeuswoods.wordpress.com

(1) Patafísica: ramo da filosofia ou ciência que examina fenómenos imaginários que existem num mundo além da metafísica; ciência das soluções imaginárias; ciência inventada pelo dramaturgo francês Alfred Jarry (1873) e definida por ele como "a ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam as exceções".
(2) OuLiPo Ouvroir de Littérature Potentielle, que pode ser traduzido como "oficina de literatura potencial". É uma corrente literária formada por escritores e matemáticos que propõe a libertação da literatura, aparentemente de maneira paradoxal, através de constrangimentos literários (http://oulipo.net/)

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Quase Tudo Para Giorgio Griffa

Oblíquo, 1976. Tinta acrílica sobre tela
O Museu de Arte Contemporânea de Serralves tem patente uma antologia de pinturas e desenhos de Giorgio Griffa. Apresentado pela primeira vez em Portugal, a exposição dá a conhecer os trabalhos deste artista desde 1969 até 2015.
A sua obra inscreve-se no grupo de trabalhos cujos autores procuraram a natureza elementar das coisas e que para concretizar esse processo basearam a sua prática artística nas utopias do reencontro com uma inocência perdida. Para Giorgio Griffa, o processo de desmontar a pintura nos seus elementos constituintes é um método de aprofundar o conhecimento. Ele desmonta a pintura nos seus componentes essenciais até chegar aos substratos inferiores, chegando a cruzar os elementos da pintura com os elementos do desenho. De certo modo, esta metodologia pode ser englobada no desejo vanguardista dos anos 60 (altura em que Griffa começa o seu trabalho) de querer redefinir as disciplinas e as práticas artísticas. No entanto, Giorgio Griffa esquiva-se a esta e outras correntes dessa época (como a da arte povera com a qual foi bastante conotado) não se classificando em nenhuma, mas indo beber a todas.
Com assumida ênfase gestual e performativa, Griffa aplica as cores de forma bruta sobre a tela não preparada nem engradada que depois é exposta igualmente sem moldura nem enquadramento físico. As dimensões dos quadros (panos...) variam, podendo apenas assumir configurações de conjunto para facilitar alguma interpretação (p.ex., um pano que foi pintado como um todo e depois cortado em secções, expondo-se estas lado a lado para sugerir uma continuidade). As cores empregues, em tintas acrílicas, aguareladas, ganham maior alegria à medida que o seu trabalho evolui ao longo das décadas. Começam por ser aplicadas como que em monossílabos sobre o pano em bruto, como se se estivesse a ensinar um abecedário muito próprio, em que as cores indicam a entoação. Surgem os magentas, os azuis e os encarnados, bastante debilitados tanto pela origem como pelo passar do tempo. Mais tardiamente, já nas últimas obras, as formas tornam-se mais complexas e aparecem os amarelos vivos, os vermelhos vivos, os laranjas e os roxos. No entanto, o que se destaca no trabalho de Griffa é de facto o gesto com que as cores são aplicadas. Vêem-se (traços) oblíquos, pontilhados grosseiros mas uniformes, arabescos e, posteriormente, números e letras. Muitas das telas estão preenchidas com pintura predominantemente à esquerda, como se tivessem começado a ser executados aí evoluindo depois para a direita. É como se fosse uma ténue alusão inconsciente aos signos da escrita. A reforçar esta alusão, observa-se que em muitos casos, na progressão da matéria pictórica da esquerda para a direita a parte mais à direita da tela ou a parte mais em baixo desta é deixada livre. Além de reforçar a reminiscência da prática da escrita, este modo de fazer progredir a matéria pictórica na tela é como se indicasse o caráter limitado da cognição humano e da busca por conhecimento: é uma demanda sempre incompleta. É também a resposta formal do artista a um desejo de imediatismo e um interesse pela dimensão performativa da pintura, ambos inspirados pela filosofia zen.
O que se destaca no trabalho de Griffa é a semelhança das suas pinturas com a prática do desenho na condição de apoio ao pensamento. Aliás, na exposição estão também desenhos em papel que são como que um elo de transição entre a ideia e a pintura em vez de constituírem esboços no sentido estrito do termo . Nos desenhos são introduzidas ideias e noções que depois são exploradas nas pinturas de maior formato. As pinturas continuam, por isso, o trabalho iniciado no desenho em vez de se suportarem nele, o que contribui em certa medida para uma decomposição nos elementos da pintura que conflui na decomposição em elementos de desenho. Além disso, os desenhos são aquilo que ele chama de “laboratório íntimo” onde pesquisa o depósito primordial da memória que são os signos .
Na sua entrevista ao Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Griffa admite que o seu trabalho é um desenvolvimento de pensamento antes de ser um desenvolvimento formal. “Eu não retrato nada, eu pinto” são as palavras do próprio Giorgio Griffa. Para ele a pintura é um problema de substância, de conhecimento de fundo.   E a confirmá-lo estão os seus trabalhos sobre a proporção áurea, numa forma que tem o seu quê de ingénuo (Griffa é um artista, não um cientista...). Porém, a decomposição da pintura nos seus elementos não serve apenas a procura de um conhecimento de fundo. Ela é, segundo o artista, um processo de procura de conhecimento profundo e coletivo. O seu método procura a memória da pintura imanente nos signos de há 30 ou 40 mil anos atrás e que está na memória de todos. “A inteligência da matéria” é uma expressão usada por Griffa para introduzir a noção de que mesmo ele próprio faz parte de uma condição global de produção artística. Ele cria a obra de arte não por sua vontade mas sim no seguimento de um diálogo com o substrato da obra seja ele a tela da pintura, o papel do desenho ou a pedra da escultura.
Para não perder o rumo no desenvolvimento da sua pesquisa, Giorgio Griffa socorre-se de referências: o seu ciclo de trabalhos do início dos anos 80 “Alter Ego” é um misto de dedicatórias, homenagens e furtos dos trabalhos de Matisse, Klein, Beuys, Klee, Tintoretto, Paolo Uccello, Piero d’Orazio, Anselmo e Agnes Martin.  Griffa luta contra a “jaula formal” (outra expressão sua) que em contrapartida e paradoxalmente lhe dá uma grande liberdade para aprofundar a sua busca de conhecimento, como se fosse “uma segunda juventude”.
A bipolaridade pintura-desenho na obra de Giorgio Griffa desvanece-se à medida que o seu trabalho evolui. As suas considerações sobre o afastamento da “jaula formal” levam-no na direção de um dos fundamentos da prática do desenho: o encontro entre pensamento, gesto e observação. O que torna interessante o trabalho deste artista é justamente esta condição de procura, de pesquisa, transposta para uma prática artística que não tem ambição de ter outra substância que não a forma. Griffa tenta mostrar que também à pintura cabe uma dimensão de procura pelo conhecimento. Ele chama para a pintura propriedades que - mais por tradição do que por conceito, diga-se - estão condicionadas à prática do desenho.

A exposição estará patente até ao dia 4 de setembro de 2016. Mais informações em Serralves.

Linhas Horizontais, 1973. Tinta acrílica sobre tela.

À Esquerda, 1969. Tinta acrílica sobre tela.


Três Linhas e um Arabesco n.º 64, 1991. Têmpera e pastel sobre papel.

Três Linhas e um Arabesco n.º 30, 1991. Têmpera e pastel sobre papel.

Cânone Áureo 820, 2014. aguarela sobre papel.

Cânone Áureo 803, 2015. aguarela sobre papel.

Papel, 1989. Lápis, pastel e tinta-da-china sobre papel.

Papel, 1968. Pastel sobre papel.
Fotografias por Rogério Guimarães.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Serge Bloch na Vista Alegre


O pequeno espaço de exposições no 1º andar do Museu da Vista Alegre, em Ílhavo, dedicado ao trabalho de Serge Bloch, está completamente preenchido por malas de cor vermelha. Num aparato de exposição um tanto superlativo, quase como se a moldura estivesse a competir com o próprio quadro, vemos as malas abertas e pousadas sobre armações metálicas. Sob a iluminação forte, as malas - que parecem de viagem - estão como que à espera de alguém que reclame o conteúdo composto por exemplares de livros e ilustrações originais do autor. Nas paredes da sala estão ainda trabalhos que tiveram outro destino que não a publicação em livro: posters institucionais ou originais maiores de comissões editoriais. De guarda ao espólio estão dois totens feitos com caixas de papelão que quase tocam o teto. Nas aborrecidas superfícies castanhas e pardas destas caixas estão figuras desconjuntadas pintadas a negro. Os totens impõem um respeito solene a quem entra na sala, como se o visitante viesse importunar uma conversa entre eles e as malas.

Nascido em 1956, na região da Alsácia, em França, Serge Bloch não tinha qualquer ideia acerca do que queria fazer com a sua vida depois de terminado o liceu. Trabalhou em vários ofícios desde a construção civil até às linhas de montagem fabris, passando pela pintura de setas em estradas, execução de furos em indústria pesada ou ainda, despejar baldes de sangue em salas de operação cirúrgica. Dedica-se à ilustração depois de descobrir que existe realmente uma profissão designada por... ilustrador! Frequenta a Escola Superior de Artes Decorativas de Estrasburgo e a partir daí a sua carreira começa a progredir quando ingressa em vários estúdios de design e jornais ao mesmo tempo que executa trabalhos em regime freelance. Além das publicações infantis, o trabalho editorial e de comunicação de Serge Bloch pode ser encontrado em jornais como The Washington Post, The Wall Street Journal, The New York Times, The Boston Globe, The Los Angeles Times, etc.

Entre os exemplares dos livros presentes estão: La Grande Histoire d’un Petit Trait, história definitivamente autobiográfica, com a referência às influências e às motivações da vontade de produzir um traço; Le Collectionneur, título sugestivo para um conteúdo que vai também buscar muita da sua substância à vida do autor; L’Ennemi, que conta o drama humano individual dentro do absurdo da guerra; Poémes et Chansons de Jacques Prévert e O Tigre na Rua (este editado em português), um pretexto para deixar um belo traço de tinta-da-china entrelaçar-se nas letras da poesia.

O trabalho de Serge Bloch parece usurpar por completo a noção de criatividade e originalidade (no sentido mais convencional do termo) não deixando nada para quem quer que venha a seguir. O seu processo criativo reduz elaboradas noções - leia-se a vida - às suas formas mais elementares. Parece que a partir dos desenhos deste autor só se podem construir coisas complexas para representar mais coisas complexas. Com isto, este ilustrador apela justamente à nossa capacidade de identificar uma ideia, um conceito ou uma noção a partir de um mínimo de elementos. E apercebemo-nos de que o fez bem quando imediatamente identificamos num simples traço contorcido no papel um qualquer objeto ou cena do quotidiano. Bem entendido, talvez se possa dizer o mesmo de tantos outros autores. No entanto, Serge Bloch ousa não se limitar a uma atitude purista e recorre a tudo o que está à mão (graficamente, claro está) para expelir urgentemente as ideias no papel.
Na escola primária a criança que desenha quer evoluir em direção às formas mais complexas, para melhor representar o real, para melhor representar o mundo que a rodeia. Serge Bloch, no entanto, não se coíbe de voltar livremente à escola primária para nos mostrar o que entretanto se perdeu com essa ambição.

Exposição “Serge Bloch” no Museu da Vista Alegre no seguimento da “Ilustrarte 2016”. Evento integrado no programa da Festa da Vista Alegre. Para ver até dia 31 de agosto. Entrada gratuita.
Mais informações AQUI.
Para saber mais sobre Serge Bloch: www.sergebloch.net


























Nota: fotografias por Rogério Guimarães.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Desenho Fora do Papel: Robin Rhode


Chalk Bike (Bicicleta de Giz), 2015. Giz e bicicleta de aço. Cortesia do artista e da Lehmann Maupin Nova Iorque e Hong Kong.
A evolução da técnica gráfica entranhou-se na condição cultural do Homem de um tal modo que, com o tempo, a maior parte das pessoas adquire a noção de que a um desenho está sempre associado um suporte tradicional como seja o papel, o tecido ou mesmo a pele - humana (tatuagens, por exemplo) ou de outro animal (pergaminho e velino medievais quando ainda não se conhecia, no ocidente, a tecnologia do papel). Lembremo-nos ainda do desenho técnico – ou da técnica do desenho – usada por carpinteiros ou pedreiros ao fazerem marcas e linhas (elementos primordiais do desenho) sobre pedra ou madeira para depois trabalhar sobre eles. Tendo isto em linha de conta o quão estranho será, por isso, desenhar fora do papel? Será que o ato de desenhar fora do papel retira propriedade ao conceito de desenho? Certamente que não. Fazer marcas com um material riscador é a essência elementar do desenho e se não como arte então pelo menos como apoio ao raciocínio ou ao pensamento criativo. Esta introdução genérica acerca da alteridade do desenho serve apenas para enquadrar a dimensão epistémica de como certos artistas contemporâneos reconstroem numa forma atual a noção do desenho fora do papel.
Robin Rhode nasceu na Cidade do Cabo, África do Sul, em 1976, foi criado em Joanesburgo e, graduou-se na South Africa School of Film, Televison and Dramatic Arts (Joanesburgo) em 2000. Apesar de ter crescido na época pós-apartheid, este artista foi mais influenciado pelas novas correntes artísticas de expressão individual do que propriamente pelo desenrolar de efervescentes questões sociopolíticas. No seu trabalho, Robin Rhode abarca vários media visuais como a fotografia, a performance, a escultura e o desenho para criar narrativas com mais ou com menos pendor para a crítica socioeconómica. A sua preocupação parece ser, isso sim e acima de tudo, a narrativa da expressão do indivíduo.
A maior parte dos seus trabalhos mostra uma sequência gestual – para a qual um observador mais avisado poderia lembrar-se de “Sequentially Yours”, de Eliot Erwitt – que implica performance e à qual é inerente a componente tempo. A performance não existe sem a componente tempo e ainda menos sem a componente espaço, entrando esta última em linha de conta através das representações gráficas que constroem o alicerce da sequência. Nas imagens bidimensionais que Robin Rhode cria, as duas componentes – tempo e espaço – são colapsadas pelo imaginário do observador e remetem para a sequência do gesto mesmo quando esta sequência não é explícita, mas antes se deixa apenas deduzir (Chalk Bike, ver abaixo). O gesto, por seu turno, é todo aquele com o qual o observador se identifica, e que lhe é, de alguma forma, familiar. A mão que aciona um gira-discos de giz (Wheel of Steel) ou o pescador de cana de pesca na mão a lutar com um pisciforme grupo de triângulos (School of Fish) são imagens que numa primeira aproximação se revelam como fotográficas, como se fossem fragmentos de uma animação mais completa, mas que na verdade assentam numa outra forma basilar sem perderem a condição dinâmica do movimento gestual latente: o desenho. O observador identifica-se facilmente com estes movimentos. Na imagética de Robin Rhode o desenho assume a dimensão que lhe é própria: transmitir uma ideia, uma noção, através de um mínimo de elementos que permitam ao interlocutor identificar o objeto patente na representação. O conhecimento a par com a experiência do observador constrói o resto da narrativa segundo as instruções que a obra do artista lhe fornece através das linguagens complementares (performance, escultura, etc.) que compõem o global da obra, quer seja no transporte para a memória, no transporte para outra experiência vivida ou para um qualquer aspeto do quotidiano - embora aqui a atividade do quotidiano para a qual é remetida seja usada como ponte para outro significado mais transcendente como as relações da matemática ou da lógica (Pascal’s Iron) e da “dança dos números” naquelas disciplinas (Typing Steps).

A obra (Bent Mies) é paradigmática no que toca à elementaridade do desenho: um indivíduo parece puxar pela linha que constitui uma cadeira cujo design é da autoria de Mies Van Der Rohe (alusão dupla à condição do desenho), mas ao invés de a cadeira se ir desfazendo como acontece quando se puxa a linha de uma camisola de lã aqui o objeto/cadeira vai-se multiplicando cada vez mais enquanto a linha se materializa num tubo (matéria prima da cadeira desenhada por Mies Van Der Rohe), num jogo absolutamente delicioso que questiona, enfim, o que se entende por desenho.
Robin Rhode é, por isso, exímio em usar o conceito de desenho na sua forma extra-ordinária, não se detendo apenas e definitivamente na estética street art convencional.


Robin Rhode vive e trabalha em Berlim e o seu trabalho é parte integrante de várias coleções públicas, incluindo Castello di Rivoli (Turim), Centre Pompidou (Paris), The Hirshhorn Museum and Sculpture Garden (Washington, D.C.), Miami Art Museum (Florida), Musée d'Art Moderne de la Ville de Paris (França), The Museum of Modern Art (Nova Iorque), Solomon R. Guggenheim Museum (Nova Iorque) e o Walker Art Center (Minneapolis).

Robin Rhode está representado pela Lehmann Maupin e poderá ver uma seleção dos seus trabalhos aqui.

Pormenor de Chalk Bike (Bicicleta de Giz), 2015. Giz e bicicleta de aço. Cortesia do artista e da Lehmann Maupin Nova Iorque e Hong Kong.

Evidence, 2015. Vinil, carvão e arame farpado. Cortesia do artista e da Lehmann Maupin Nova Iorque e Hong Kong.

Light Giver, Light Taker, 2015. Lâmpada preta: espuma de poliuretano e carvão; lâmpada branca: espuma de poliuretano e giz. Cortesia do artista e da Lehmann Maupin Nova Iorque e Hong Kong.