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Museu de Docklands (Museum of Docklands), 1986. Cortesia do Prof. Neil Spiller. |
A primeira vez que me cruzei com o trabalho de Neil Spiller foi numa pequena palestra de fim-de-dia, proferida pelo próprio Spiller, como parte complementar do programa de um breve curso de desenho. A oratória e a gráfica daquela palestra era indubitavelmente familiar, mas com um quê de incomum suficiente para obrigar a uma atenção redobrada para se entender exatamente o seu conteúdo. A pequena sala de conferências estava ime
rsa em semiobscuridade à exceção do local onde o orador apresentava o seu trabalho. De postura serena e humor subtil – mas sem nunca se rir – Neil Spiller desfiava o rosário de verdades, ironias e sarcasmos da sua carreira, com as referências às pessoas e aos momentos-chave ligados aos desenhos que se iluminavam numa grande tela branca atrás de si. O discurso fomentava um ambiente entrecortado por risos vindos da audiência, enquanto na grande superfície branca se projetavam imagens de desenhos executados em papel, com linhas ora precisas, de uma tecnicalidade irrepreensível, ora libertas, de desenho à mão livre; traços de uma finura exata, a par com outros de uma espessura necessária; manchas e sombreados, que vão de negros retintos a cinzentos brilhantes; em alguns desenhos, as marcas feitas no papel dão forma a uma imagem mais ou menos familiar enquanto noutros, a algo que a audiência reconhece como um qualquer objeto, mas cuja escala não se torna imediatamente evidente; noutros ainda, os desenhos afiguram-se como algo absolutamente abstrato. Eventualmente, o orador abandonava o seu posto em direção à tela e apontava este ou aquele pormenor da imagem para acompanhar a sua dissertação, identificando uma ou outra nomenclatura técnica menos evidente. Apesar da abundante dimensão artística, e ultrapassada a estranheza aparente, os trabalhos mostrados na grande tela podiam afinal ser olhados e classificados como desenho de arquitetura. Porém, reduzir a obra produzida por Neil Spiller (individualmente ou em colaboração com outros artistas e arquitetos) a um conjunto de propriedades artísticas ou um conjunto de técnicas de projeto arquitetónico será por demais simplista. É difícil sintetizar e englobar numa só categoria toda a sua produção imaginária e simbólica, todo o seu conteúdo semiótico, sendo inegável o contributo da obra deste prolífico arquiteto para a discussão dos paradigmas das práticas contemporâneas do desenho e da arquitetura.
Neil Spiller é professor catedrático de Arquitetura e Paisagem em Hawksmoor e Deputy Pro-Vice-Chancellor da Universidade de Greenwich, Londres, tendo sido antes disso Reitor da Escola de Arquitetura, Design e Construção e Professor de Arquitetura e Teoria Digital nessa mesma universidade. Previamente, foi Vice-Reitor e Diretor Graduado de Design na Bartlett School of Architecture, na University College London. Neil Spiller é também conhecido por ter dirigido em 2004 a fundação do AVATAR (Advanced Virtual and Technological Architectural Research) Group, sediado atualmente na Universidade de Greenwich. Este grupo possui os seus próprios programas de Mestrado e Doutoramento e conduz pesquisas dentro das tecnologias avançadas em representação arquitetural dando maior importância à pesquisa do impacto no design do séc. XXI de novas tecnologias como a virtualidade e a biotecnologia. Neil Spiller e o AVATAR Group são reconhecidos pela sua contribuição para a mudança de paradigmas no discurso, pesquisa, experimentação e ensino arquitetónicos. E nesse contexto Spiller acredita que os tutores são “parteiras criativas que ajudam a dar à luz o trabalho individual dos estudantes, trabalho esse que é influenciado pelo passado sem no entanto se deixar escravizar por ele”(Spiller).
Em linha com o trabalho deste artista estão antecessores extemporâneos como Giovanni Piranesi, Etienne-Louis Boulee (ambos do séc. XVIII), Hermann Finsterlin (mais recente, nascido em 1887), ou a dupla Alexander Brodski e Uliya Utkin (pertencentes ao grupo cognominado paper architects) e outros contemporâneos, como Lebbeus Woods, constituindo referências maiores da chamada arquitetura visionária. Esta nada convencional e experimental arquitetura visionária é relativizada por duas perceções quase paradoxais: uma em que é inexistente a noção de edificações impossíveis de serem construídas; e outra em que as edificações muito dificilmente serão habitadas ou funcionalizadas por seres humanos apesar de serem pensadas para tal. Apesar de os desenhos de Neil Spiller parecerem absolutamente utópicos, as edificações por si projetadas apenas assim parecem devido justamente à não existência de uma fonte de financiamento suficientemente excêntrica para suportar uma tal empreitada. Os seus trabalhos surgem da génese das prescrições do projeto arquitetónico mas fundem-se na obra artística. No fundo, essa poderá ser a relação de amor-ódio, um misto de estigma/triunfo, da arquitetura visionária com o produto artístico. De facto, tais trabalhos – ou projetos?- vivem dessa dualidade possível/impossível que faz com que esta forma de arquitetura habite apenas o papel. De certo modo, construir concreta e fisicamente o que Neill Spiller projeta (válido também para os outros arquitetos visionários) seria aniquilar a visão do arquiteto-artista. Convenhamos: há certas coisas, certas visões, que apenas detêm a sua magia se nunca saírem do papel (muitas vezes até no estado embrionário do esboço ou do estudo preliminar).
Facto interessante do trabalho de Neil Spiller é o de ele subverter a própria técnica de normalização da apresentação do desenho em arquitetura. A visualização do projeto mantém as nomenclaturas típicas - elevações, alçados, cortes, axonometrias, vistas explodidas, extrusões - mas requer algum exercício de imaginação para que se possa experienciar a concretização da construção civil em questão. Na verdade, as nomenclaturas estão lá, sim, mas poderão não ser o que um observador avisado pelas boas regras da arte do projeto em arquitetura estará à espera (ver abaixo Desenho para o projeto de uma nova escola da Architectural Association School, p. ex., ou Museu de Docklands).
Observe-se como a partir de Rua Dean (e até do Desenho para o projeto de uma nova escola da Architectural Association School) os desenhos de arquitetura mais facilmente identificáveis e ortodoxos se vão transmutando gradualmente em gráficos de projeto cada vez mais e mais autónomos sob uma perspetiva artística, apesar de nunca perderem de vista (literalmente) o desenho de projeto e a ideia de uma materialização autêntica. Não será necessário ser um conhecedor profundo para intuir que a arquitetura e o desenho têm um longo historial de pareceria, de inerência, de cumplicidade mesmo. Porém, a possibilidade de o desenho adquirir uma certa autonomia em relação ao que se prevê construir detém em si mesma uma grande potência. São desenhos que poderiam ser edificações, mas que provavelmente nunca o serão, devido tanto à excentricidade da empreitada como à autonomia da obra desenhada. E no entanto, ambas as condições sustêm a manifestação de obra artística na medida em que se sujeitam às múltiplas leituras de quem as observa. A literalidade dessas leituras é dicotómica: mais libertadora quando o projeto, ainda no papel, é votado à utopia ou mais evidente quando o desenho é pensado como uma edificação a construir (não fosse o tamanho da sua excentricidade torná-lo uma quase nulidade do ponto de vista da usabilidade). Aqui, definitivamente a forma não segue a função. Não é raro por isso encontrar arquitetos que praticamente abandonaram a ideia do desenho como ferramenta de projeto para abraçarem a potencialidade exclusiva do desenho como valência por si própria.
Em todo o caso, e sob a luz dos adventos da história da arte desde o modernismo até à contemporaneidade, este tipo de trabalho criativo traz-nos novas formas de ver e fazer, novas formas de experienciar e exercitar a nossa relação com a arquitetura e com o desenho. O desenho é-nos mostrado uma vez mais na sua dimensão de ferramenta de apoio ao processo de imaginação e de concretização arquitetónica e da forma como comunicamos essas faculdades. O trabalho de Neil Spiller é por isso um grande contributo para a massa crítica da evolução da prática contemporânea do desenho e da exploração dos seus paradigmas. A obra Máquina Velasquez reflete mesmo uma certa preocupação com esse contributo, não em absoluto para com o desenho, mas para com a arte em geral. Para Neil Spiller foi desde Velasquez (1599) que os artistas começaram a ser cada vez mais narcisistas, em que eles próprios são simultaneamente o sujeito e o objeto das suas obras (vejam-se os exemplos de Tracey Emin ou Nan Goldin, nomes maiores da arte contemporânea). A preocupação com a posição do narcisismo na arte contemporânea está patente neste objeto arquitetónico: através da subversão de um manifesto narcisista, a Máquina Velasquez remete para o interesse do autor em pôr em evidência “o encavalitar da abstração e da representação, uma perturbação crítica na história da arte” (Spiller). Porém, as preocupações de Neil Spiller vão mais além do que os conceitos elementares da arte.
Desde cedo que Neil Spiller faz tentativas de introduzir a narrativa na obra arquitetónica. Se por um lado a ideia não é nova, por outro a narrativa desapareceu do panorama arquitetónico desde o modernismo, devido à sua atitude de “santidade de programa e funções” (Spiller). A intenção deste arquiteto quanto à narrativa torna-se evidente logo nas primeiras obras (Desenho para o projeto de uma nova escola da Architectural Association School) e prolonga-se depois até obras mais recentes como Pavilhão Milénio. Pavilhão Milénio mostra essa noção de edificação como metáfora ou narrativa em que uma série de eventos levados a cabo pelo eventual utilizador constroem a função do edifício. Para Neil Spiller, a sociedade conforma o corpo – o corpo é o conduto da arquitetura. Conforme o corpo é modificado, modificam-se também as possibilidades arquiteturais. “A arquitetura deverá responder numa variedade de novas escalas, algumas microscópicas, outras cosmoscópicas” (Spiller)
Vasos Comunicantes é provavelmente a obra mais paradigmática de Neil Spiller. Vasos Comunicantes é uma obra iniciada em 1998 e continuada até hoje como um corpo de trabalho de pesquisa em design de arquitetura. Neste trabalho estão patentes dois focos de pesquisa: num dos focos é reiterada a influência de várias áreas da produção científica humana (da biotecnologia, do virtual e da nanotecnologia) na arquitetura, nomeadamente em “relação à velha dicotomia entre arquitetura e paisagem.” (Spiller); o outro foco de pesquisa constitui-se na abordagem aos paradigmas da arquitetura na busca de arranjos espaciais mais apropriados à nossa atualidade. Neil Spiller afirma que “observando algumas das táticas espaciais dos Dadaístas, Patafísicos(1), Surrealistas, Situacionistas, OuLiPo(2) e Simbolistas, podemos adquirir um conhecimento de novos arranjos espaciais [...] apropriados para o nosso tempo” (Spiller). Com Vasos Comunicantes Spiller pretende assegurar-se que estamos perante uma “evolução de estéticas suaves no meio de um frenesim extático” (Spiller) como uma metáfora autêntica de contracultura dentro da progressão da própria arte contemporânea. Este projeto de pesquisa conta atualmente com mais de 250 desenhos e milhares de palavras de prosa e explicação teórica. Como numa navegação de cabotagem, o processo deste trabalho despoja-se gradualmente dos constrangimentos técnicos e, porque não dizê-lo, sacrossantos das arquiteturas para se constituir em direção a um trabalho artístico, assumindo porém sempre aquela dimensão de um projeto que na sua génese é de arquitetura (sempre na presença da preocupação com os entabulamentos espaciais que conformam a arquitetura).
Quem procura ilustração no mundo que Neil Spiller criou ficará profundamente desiludido, é uma tarefa vã. “Um bom esquema e desenho deverá ter enigmas, um certo espaço de manobra para permitir posterior releitura especulativa” (Spiller). Os seus desenhos são complexos e formulam pensamentos igualmente complexos. Lebbeus Woods escreveu sobre Neil Spiller:
“Para Neil Spiller, desenho é pensamento. Ele não ‘expressa’ pensamentos previamente formulados [...]. Ao invés, ele formula pensamentos através do desenho, efetivamente pelo desenho. [...] Sentimo-nos, depois de entrarmos nos desenhos, como se tivéssemos descoberto um mundo inteiro, cuja exploração nos levará para longe do mundo que nos é familiar, mas que eventualmente nos trará de volta a ele, com as nossas perceções enriquecidas, as nossas imaginações estimuladas e expandidas, o melhor para apreciar com novas maneiras o que nos é familiar”.
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Desenho para o projeto de uma nova escola da Architectural Association School, em Covent Garden. Perspetiva Interior: Vida (Interior Perspective: Life); 1985. [Cortesia do Prof. Neil Spiller] |
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Rua Dean (Dean Street), 1985. Cortesia do Prof. Neil Spiller. |
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Pavilhão Milénio (Millenium Pavillion), 1996. Cortesia do Prof. Neil Spiller. |
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O Objecto Além de Si Próprio (Vasos Comunicantes) [The Object Beside Itself (Communicating Vessels)], 1998. Cortesia do Prof. Neil Spiller. |
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Máquina Velasquez (Velasquez Machine), 2002. Cortesia do Prof. Neil Spiller. |
Para saber mais sobre o trabalho de Neil Spiller:
lebbeuswoods.wordpress.com
(1) Patafísica: ramo da filosofia ou ciência que examina fenómenos imaginários que existem num mundo além da metafísica; ciência das soluções imaginárias; ciência inventada pelo dramaturgo francês Alfred Jarry (1873) e definida por ele como "a ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam as exceções".
(2) OuLiPo Ouvroir de Littérature Potentielle, que pode ser traduzido como "oficina de literatura potencial". É uma corrente literária formada por escritores e matemáticos que propõe a libertação da literatura, aparentemente de maneira paradoxal, através de constrangimentos literários (http://oulipo.net/)
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