segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Rabiscos Medievais

Desenho executado para indicar uma parte importante do texto para referência futura [Cortesia do Dr. Erik Kwakkel, Biblioteca da Universidade de Leiden]

Consideremos os seguintes cenários:

Cenário 1: você está numa reunião com o seu grupo de trabalho da multinacional onde exerce funções. Há mais de hora e meia que o grupo está numa discussão ininterrupta sobre o sexo dos anjos e a lei dos cacos. Você trabalha em frente a um computador oito horas por dia e neste momento o trabalho que lhe foi atribuído padece de alguns problemas que precisam ser resolvidos. Enquanto o orientador da reunião não questiona a evolução do trabalho que lhe foi atribuído, você vai rabiscando nas páginas do dossier que tem à sua frente, perdido nos seus pensamentos, longe daquela sala. Os rabiscos vão evoluindo, alguns com nexo, outros nem por isso, mas sempre numa progressão discreta ao longo do que lhe parecem horas e horas de reunião...

Cenário 2: O professor da disciplina a que você é obrigado a assistir está com uma verborreia ininterrupta desde o início da aula (há três quartos de hora atrás...) e promete continuar na meia hora seguinte. A disciplina a que está assistir não tem na verdade, qualquer utilidade para os fins a que o curso se propõe. Mas faz parte do currículo e sem aprovação nela você não consegue o certificado de habilitações. Como sobreviver a este tempo? Uma solução será rabiscando no livro de orientação da disciplina (que até foi bastante caro, pois esta disciplina não dispõe de uma sebenta) ao sabor do pensamento e do sonho, para o qual muito contribui a janela ao lado da sua secretária.


Poderíamos talvez pensar que estes dois cenários (com tantas outras variações de espaço e tempo) são maleitas das quais padecem os tempos modernos. Porém, talvez isso não seja verdade. Alguns livros dos sécs. XIII e XIV mostram-nos outra realidade. O Dr. Erik Kwakkel, um estudioso de livros da idade média, mostra-nos alguns dos rabiscos mais antigos do mundo feitos nas páginas de livros. No entanto, a maior parte dos rabiscos aí encontrados teriam diferentes propósitos consoante a pessoa que os executava, podendo ser distinguidos em três tipos diferentes. O primeiro tipo de rabiscos, os que se encontram nas páginas em branco do fim ou do princípio do livro, tinham o propósito de experimentar previamente a caneta, assim como o gesto, naquilo que se poderia chamar de "ensaios de caneta", com a qual o escriba ou copista iria empreender a escrita do livro. Como o Dr. Kwakkel refere, os rabiscos desta natureza mostram muito da maneira de ser do escrivão, pois ao longo da sua carreira este tinha de adaptar o estilo da escrita (na forma e no conteúdo) consoante o mosteiro onde trabalhava, a região ou mesmo o país para onde se mudava. No entanto, os “ensaios de caneta” eram invariavelmente feitos num estilo padrão do sítio ou região onde o seu treino e formação haviam tido lugar.

O segundo tipo de rabiscos é aquele em que os desenhos eram utilizados para assinalarem uma determinada passagem do texto considerada importante para referência futura. Neles podemos ver pequenas mãos a apontarem para essas porções de texto, como que a indicar e a lembrar a importância. Apesar do valor dos livros na idade média ser à época comparado ao dos artigos de luxo (lembremo-nos que estamos a falar de livros cuja produção é anterior ao advento da tipografia europeia), podemos encontrar ainda um terceiro tipo de rabiscos e desenhos que parecem ser indicativos de uma e uma só coisa: tédio! Ao que parece, o tédio de ler um livro de filosofia na escola - principalmente se se é um jovem estudante... - é transversal ao decorrer dos séculos e remonta ao tempo das primeiras edições de livros. No que respeita à monotonia e ao aborrecimento nada é demasiado sagrado ou demasiado valioso...
(Via Colossal)


Rabisco na margem inferior de uma página manuscrita contendo “As Sátiras” de Juvenal. [Cortesia do Dr. Erik Kwakkel, Biblioteca da Universidade de Leiden e Biblioteca Municipal de Carpentras MS 368]

Figuras de narizes pontiagudos, Biblioteca da Universidade de Leiden, séc. XIII (MS BPL 6 C) [Cortesia do Dr. Erik Kwakkel e da Biblioteca da Universidade de Leiden]

[Cortesia do Dr. Erik Kwakkel e da Biblioteca da Universidade de Leiden]

Rabisco descoberto num manuscrito jurídico do séc. XIII (Amiens BM 347) [Cortesia do Dr. Erik Kwakkel e da Biblioteca da Universidade de Leiden]

Ensaios de caneta pela escrita de frases curtas e desenhos. Os 'ensaios de caneta' desta imagem são da Biblioteca Bodleiana, Oxford, Séc. XV. [Cortesia do Dr. Erik Kwakkel e da Biblioteca da Universidade de Leiden]




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